domingo, 18 de maio de 2025

Crônica de uma cruz enfeitada


Mais um ano, mais um outono, e estou mais uma vez enfeitada! Linda, leve e solta – embora presa aqui no mesmo lugar. Mas isso faz anos… muitos anos, na verdade. Muitos anos desde que aquele senhor pegou um caule mais longo e outro mais curto, juntou em um só e afixou bem em frente à porta da sala de sua casa. Desde então, todo ano, quando o frio começa a apertar meus veios secos, uma moça, que muito vi crescer, me enfeita toda com fitas coloridas, mesmo depois que o senhor que me criou deixou de passar perto de mim. Como fico linda!

Este ano não foi diferente, mas algo estranho aconteceu.

Desde que fui criada, e mesmo antes, quando eu era o caule mais longo e o caule mais curto, sempre vi muitos animais por aqui, principalmente cachorros, de que não me esqueço porque nunca conseguiram deixar de fazer xixi em mim. Vejo uns todos os dias; outros vejo apenas de vez em quando; outros já não vejo há muito tempo. Mas o que está intrigando é o sumiço do Espoleta Caramelo, bem novinho, recém-chegado por aqui, que passava por mim todos os dias, sem nem me dar atenção até pouco depois de a moça me enfeitar dessa última vez. Não o vejo desde que resolveu brincar de tirar os enfeites das minhas partes que ele alcançava com seus dentes branquinhos. Brincadeira de criança, eu sei. E não me importei nem um pouco por ele fazer isso. Eu já o tinha visto passando por mim com chaves de fenda, luvas e outras ferramentas na boca. E eu achava uma graça! Espoleta todo! Brincadeira de criança.

Mas, sobre a brincadeira com meus enfeites, achei até interessante, pois foi o único de todos os que já passaram por aqui que realmente se interessou por esses enfeites coloridos. Foi um verdadeiro deleite vê-lo jogando as fitas para o alto, rodopiando, rosnando, rolando no chão, pulando com elas na boca. Essa alegria foi maior do que a tristeza que eu poderia sentir por perder uma parte dos meus enfeites. O resto continua enfeitado, e, mesmo assim, passo a maior parte do ano sem esses enfeites ou com eles já sem cor, corroídos pelo vento, pela chuva, pelo orvalho, pelo xixi dos meus companheiros. Logo, logo mais um ano passa: volto a ser enfeitada mais uma vez e fico tão feliz como em todas as outras vezes.

Não sei por que nem pra que os enfeites; só sei que é assim. O pouco que sei, pelo que já ouvi, é que os da casa parecem se sentir protegidos e agradecidos*, mas não sei por quê. Como eu, parada aqui, inerte, toda enfeitada, toda colorida, protejo alguém de alguma coisa? E não acho que eu ficaria triste se nunca tivesse esses enfeites em mim; afinal, nesta minha vida de tantas vindas da terra para os ares e tantas voltas dos ares para a terra, eles são coisas de que nunca precisei e, se vêm, apenas os aceito, pois não tenho como rejeitá-los.

Uma coisa que notei foi que o Espoleta sumiu desde que ouvi um moço da casa do meu criador contar as peripécias do Espoleta com meus enfeites ao dono da casa de onde ele vinha todas as manhãs. Desse último só escutei um “Pode deixar que vou dar um jeito nele”.

O que será que ele quis dizer com isso? Se é para isso que sirvo, só espero que minha proteção esteja com o Espoleta e que os da casa que me criou se sintam agradecidos por essa proteção.

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* Nota: Em muitas regiões, enfeitar cruzes no início de maio é um ritual popular associado à proteção e à gratidão. A prática remonta ao Dia da Invenção da Santa Cruz (3 de maio), ligado à tradição mitológica católica segundo a qual Helena (246/48–330), mãe do imperador romano Constantino I (272–337), teria encontrado em Jerusalém a cruz onde Jesus foi crucificado, junto com os três pregos usados no suplício, que, segundo a tradição, teriam sido transformados em uma coroa e um freio de cavalo para o imperador. Trata-se de um episódio sem confirmação histórica, que parece ter servido mais à consolidação simbólica do cristianismo como religião imperial do que a um fato historicamente comprovado.

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Publicado como coluna no jornal "O Alto Paraopeba":
https://jornaloaltoparaopeba.com.br/index.php/2025/05/18/cronica-de-uma-cruz-enfeitada/

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