terça-feira, 24 de junho de 2025

Humanos, reféns de memórias

As consequências de um ataque ao campo de refugiados de Jabalia, em Gaza,
no início da Guerra Israel-Hamas, em 2023 (Fonte da imagem: 
BBC News Brasil)

Nós, humanos, somos as memórias que criamos e mantemos. Nada mais que isso. Uma ligação neuronal que se quebra em nosso cérebro é suficiente para deixarmos de ser o que éramos antes do fenômeno. Se você acredita que existe algo como “alma”, as evidências científicas encontradas até hoje indicam que aquilo que entendemos como “eu”, “consciência” ou “identidade” se resume às memórias, que, por sua vez, são fruto das conexões neurais e dos padrões de atividade elétrica e química do nosso cérebro.

Não escolhemos onde nascer e, quando nascemos e chegamos a uma idade em que temos certo grau de compreensão, nos são ensinados diversos costumes a que não temos direito de escolha. Em outras palavras, esses costumes são imputados em nossa mente, tornando-se nossas primeiras memórias. Esses costumes são tradições religiosas, culturais e políticas. A regra de ouro para uma coexistência pacífica é obedecer a esses costumes sem jamais questionar por que existem ou os motivos para obedecê-los. Uma ferramenta crucial para a criação e manutenção de uma sociedade humana coesa e manipulável.

Em seu “Discurso da Servidão Voluntária” (1577), Étienne de La Boétie (1530-1563) afirma que as coisas às quais o homem é treinado e acostumado parecem naturais a ele, moldando seu caráter de forma que ele segue instintivamente as tendências dadas por seu treinamento. Trilhar esse caminho instintivo impede que o homem perceba sua natureza de ser e desejar ser livre. E é justamente por isso que fazê-lo trilhar esse caminho é essencial para aqueles que o treinaram e reforçam seu treinamento de quando em quando, senão constantemente, por meio da educação e de símbolos, rituais, propaganda e inúmeras outras ferramentas. Tudo cuidadosamente destinado a mantê-lo em uma servidão voluntária a eles.

Com as memórias criadas e mantidas por esse treinamento, os treinadores – que, daqui em diante, passarei a chamar de “dominadores” – conseguem manter boa parte de uma sociedade, ou até toda ela, sob seu controle, o que lhes permite utilizá-la a seu bel-prazer: seja para se perpetuar no poder, livres para fazer o que quiserem, sem reprimendas; seja para combater quem ameaça tomar esse poder; seja ainda para impor sua dominação sobre outras sociedades, inclusive de outras nações, que, obviamente, possuem outros costumes, portanto, outras memórias. Aos dominadores nada é mais essencial do que o treinamento que dão. Depois desse treinamento primordial, apenas o treinamento técnico – aquele que permitirá aos subordinados realizar os engenhos, bélicos ou não, de seus dominadores – é essencial. Nenhum outro treinamento se faz necessário.

Um treinamento que ultrapassasse os limites do conhecimento proporcionado pelos outros dois poderia pôr fim à cegueira causada pelo nacionalismo, pelo patriotismo e pelo fanatismo religioso ensinados e reforçados desde cedo pelo treinamento primordial. Um treinamento que ultrapassasse os limites do conhecimento proporcionado pelos outros dois poderia revelar que o “outro”, que aprendemos a ver como inimigo, alguém de quem devemos ter medo, é, na verdade, bem parecido conosco mesmoshumano como nós mesmos. Poderia revelar, ainda, uma verdade incômoda: que todo o treinamento primordial beneficia, exclusivamente, ninguém mais do que os próprios dominadores.

Isso pode parecer algo distante no tempo, no espaço, algo que não cabe no século XXI. Mas não é. Basta se afastar um pouco de nossa confortável ilha, seguindo o conselho de José Saramago (1922-2010) – ou, dito de uma forma contemporânea, que saiamos de nossa aconchegante “bolha” –, e voltar os olhos para ela, agora com nosso senso crítico ligado. Esse fenômeno está em toda parte, em diferentes matizes e graus de intensidade em qualquer sociedade: da família mais pobre à mais rica, da sua família à família de alguém do outro lado do mundo, da padaria da esquina às maiores corporações, da igreja evangélica de uma só porta aos maiores templos religiosos, da escola de um minúsculo povoado às maiores universidades, da prefeitura de uma cidade minúscula ao governo dos maiores países.

No Leste Europeu, a guerra entre Rússia e Ucrânia segue sustentada por narrativas nacionalistas e memórias históricas moldadas para justificar o presente, chegando ao ponto de a Rússia sequestrar crianças ucranianas e doutriná-las para guerras futuras. No Oriente Médio, os intermináveis ciclos de violência entre Israel, Gaza, Irã e seus aliados, onde o inimigo é uma construção tão enraizada, mantida há tantos séculos, que qualquer possibilidade de coexistência parece, muitas vezes, impossível. Na África, conflitos como a Guerra Civil do Sudão, da República Democrática do Congo, da Somália, da região do Sahel e tantos outros, onde etnias, religiões e fronteiras artificiais criadas pelo colonialismo seguem alimentando massacres, deslocamentos forçados e tragédias invisíveis para grande parte do mundo. Dentro do próprio Brasil, o inimigo é fabricado diariamente: nas periferias, onde a população negra é o alvo preferencial; nas florestas, onde povos originários são tratados como "obstáculos ao progresso"; e nas ruas e redes sociais, onde o diferente é visto como ameaça a ser combatida, não como alguém com quem se dialoga.

Memórias nos indicam quem são nossos familiares, nossos amigos e, mais importante, nossos inimigos – aqueles que, em termos de evolução biológica, ameaçam nossa existência e, por consequência, a sobrevivência de nossa descendência. Memórias movem desde pequenos conflitos familiares a guerras mundiais. Memórias definem que objeto pertence a quem, que ínfimo pedaço de terra pertence a quem, que território pertence a quem, que continente pertence a quem. Memórias fazem derramar o sangue inocente de quem é enviado para lutar guerras movidas por líderes egocêntricos que viverão os últimos dias dos confins de sua velhice em um leito macio e quente.

Quando seguimos cegamente o que nos é ensinado no treinamento primordial que nos é dado – treinamento que condena alguém que é humano como nós mesmos, que difere de nós apenas nos costumes e no lugar em que nasceu, ambos frutos do acaso –, corremos o risco de nos condenarmos a nós mesmos. Quando apoiamos alguém que demoniza ou pretende destruir outro ser humano, precisamos criar, contra toda a vontade dos que nos dominam, a memória de que também somos humanos e uma hora ou outra poderemos ser demonizados e destruídos.

Para encerrar, retoco no ponto do inimigo, mencionado duas vezes ao longo deste texto, relembro a conferência “Construir o inimigo”, realizada em 2008 e publicada no livro “Construir o inimigo e outros escritos” (2011), em que Umberto Eco (1932-2016) mostra como definir o “outro” como inimigo ajuda os poderosos a definir quem é o “nós”, um mecanismo talvez tão antigo quanto a própria humanidade. O mais impressionante, a meu ver, é que esses inimigos não precisam ser necessariamente reais, concretos, palpáveis: eles podem ser completamente imaginários, inventados, distorcidos ou exagerados. A simples ideia de um inimigo já é suficiente para gerar coesão interna, fortalecer laços de pertencimento e justificar qualquer tipo de violência, repressão ou opressão

A questão imaginária me impressiona por causa da contínua exploração da fragilidade humana em se apegar a superstições, que, ainda hoje, seguem vivas, apesar de todo o avanço da ciência, do conhecimento e da tecnologia que a humanidade foi capaz de desenvolver. E é exatamente disso que os dominadores precisam. O treinamento primordial utilizado por eles há tantos milênios jamais perdeu completamente sua eficácia frente a qualquer avanço do conhecimento humano.

Observando o padrão que a História nos mostra, me parece que, por mais que eu e tantas outras pessoas – muito mais capacitadas do que eu – lutemos pela promoção do pensamento crítico, talvez a única ferramenta capaz de ajudar a humanidade a se proteger de tais dominadores, não importa quanto tempo passe, nós, humanos, seguiremos sendo, talvez para sempre, reféns das memórias que nós mesmos criamos.

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Publicado como coluna no jornal "O Alto Paraopeba":
https://jornaloaltoparaopeba.com.br/index.php/2025/06/15/humanos-refens-de-memorias/

domingo, 18 de maio de 2025

Crônica de uma cruz enfeitada


Mais um ano, mais um outono, e estou mais uma vez enfeitada! Linda, leve e solta – embora presa aqui no mesmo lugar. Mas isso faz anos… muitos anos, na verdade. Muitos anos desde que aquele senhor pegou um caule mais longo e outro mais curto, juntou em um só e afixou bem em frente à porta da sala de sua casa. Desde então, todo ano, quando o frio começa a apertar meus veios secos, uma moça, que muito vi crescer, me enfeita toda com fitas coloridas, mesmo depois que o senhor que me criou deixou de passar perto de mim. Como fico linda!

Este ano não foi diferente, mas algo estranho aconteceu.

Desde que fui criada, e mesmo antes, quando eu era o caule mais longo e o caule mais curto, sempre vi muitos animais por aqui, principalmente cachorros, de que não me esqueço porque nunca conseguiram deixar de fazer xixi em mim. Vejo uns todos os dias; outros vejo apenas de vez em quando; outros já não vejo há muito tempo. Mas o que está intrigando é o sumiço do Espoleta Caramelo, bem novinho, recém-chegado por aqui, que passava por mim todos os dias, sem nem me dar atenção até pouco depois de a moça me enfeitar dessa última vez. Não o vejo desde que resolveu brincar de tirar os enfeites das minhas partes que ele alcançava com seus dentes branquinhos. Brincadeira de criança, eu sei. E não me importei nem um pouco por ele fazer isso. Eu já o tinha visto passando por mim com chaves de fenda, luvas e outras ferramentas na boca. E eu achava uma graça! Espoleta todo! Brincadeira de criança.

Mas, sobre a brincadeira com meus enfeites, achei até interessante, pois foi o único de todos os que já passaram por aqui que realmente se interessou por esses enfeites coloridos. Foi um verdadeiro deleite vê-lo jogando as fitas para o alto, rodopiando, rosnando, rolando no chão, pulando com elas na boca. Essa alegria foi maior do que a tristeza que eu poderia sentir por perder uma parte dos meus enfeites. O resto continua enfeitado, e, mesmo assim, passo a maior parte do ano sem esses enfeites ou com eles já sem cor, corroídos pelo vento, pela chuva, pelo orvalho, pelo xixi dos meus companheiros. Logo, logo mais um ano passa: volto a ser enfeitada mais uma vez e fico tão feliz como em todas as outras vezes.

Não sei por que nem pra que os enfeites; só sei que é assim. O pouco que sei, pelo que já ouvi, é que os da casa parecem se sentir protegidos e agradecidos*, mas não sei por quê. Como eu, parada aqui, inerte, toda enfeitada, toda colorida, protejo alguém de alguma coisa? E não acho que eu ficaria triste se nunca tivesse esses enfeites em mim; afinal, nesta minha vida de tantas vindas da terra para os ares e tantas voltas dos ares para a terra, eles são coisas de que nunca precisei e, se vêm, apenas os aceito, pois não tenho como rejeitá-los.

Uma coisa que notei foi que o Espoleta sumiu desde que ouvi um moço da casa do meu criador contar as peripécias do Espoleta com meus enfeites ao dono da casa de onde ele vinha todas as manhãs. Desse último só escutei um “Pode deixar que vou dar um jeito nele”.

O que será que ele quis dizer com isso? Se é para isso que sirvo, só espero que minha proteção esteja com o Espoleta e que os da casa que me criou se sintam agradecidos por essa proteção.

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* Nota: Em muitas regiões, enfeitar cruzes no início de maio é um ritual popular associado à proteção e à gratidão. A prática remonta ao Dia da Invenção da Santa Cruz (3 de maio), ligado à tradição mitológica católica segundo a qual Helena (246/48–330), mãe do imperador romano Constantino I (272–337), teria encontrado em Jerusalém a cruz onde Jesus foi crucificado, junto com os três pregos usados no suplício, que, segundo a tradição, teriam sido transformados em uma coroa e um freio de cavalo para o imperador. Trata-se de um episódio sem confirmação histórica, que parece ter servido mais à consolidação simbólica do cristianismo como religião imperial do que a um fato historicamente comprovado.

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Publicado como coluna no jornal "O Alto Paraopeba":
https://jornaloaltoparaopeba.com.br/index.php/2025/05/18/cronica-de-uma-cruz-enfeitada/

domingo, 30 de março de 2025

"Sua hora chegou": quando o "destino" é fruto da negligência

 

Cemitério em Manaus durante o auge da pandemia de Covid-19 no Brasil,
em maio de 2021 / Fonte: Michael Dantas/AFP/Getty Images

Este texto é o aprofundamento do assunto abordado no vídeo "SUA HORA CHEGOU!", publicado em nosso canal no YouTube. Assista ao vídeo aqui: https://www.youtube.com/shorts/ZrFz3PRxW4w

Você já ouviu alguém dizer que uma pessoa morreu porque “a hora dela chegou”? Essa frase tão comum muitas vezes serve para mascarar algo alarmante: a negligência que transforma problemas evitáveis em tragédias devastadoras.

Vemos isso acontecer repetidamente. Pense, por exemplo, no desabamento da ponte entre os estados de Tocantins e Maranhão, ocorrido em 22 de dezembro de 2024, que tirou vidas e deixou famílias arrasadas. Relatórios técnicos apontavam problemas estruturais desde 2019, mas a falta de manutenção transformou um alerta em tragédia. Pense ainda nas chuvas catastróficas no Rio Grande do Sul, entre o final do mês de abril e o início do mês de maio de 2024, que resultaram em mais de 180 mortes e afetaram mais de dois milhões de pessoas. Essa enchente, longe de ser um evento isolado, escancarou a ausência de planejamento urbano adequado, a ocupação desordenada de áreas de risco e a falta de investimentos em infraestrutura preventiva.

E é claro que não posso deixar de mencionar a negligência durante a pandemia de Covid-19, ocorrida antes dessas duas tragédias. A demora na adoção de medidas eficazes, a desinformação disseminada por autoridades e a falta de investimentos em prevenção levaram o Brasil a registrar centenas de milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas. Esse cenário de desinformação minou a confiança de parte da população nos órgãos de saúde e, como consequência, doenças antes controladas e preveníveis por vacinação estão voltando a se manifestar.

Esses eventos não foram obra do “destino”, mas de FALHAS HUMANAS! Atribuir essas mortes ao acaso é uma forma de negar responsabilidades. Quando ignoramos relatórios de risco, quando governos postergam investimentos essenciais, quando fechamos os olhos para o impacto ambiental das nossas ações, estamos, na prática, assinando sentenças de morte.

O mais inquietante é que esse padrão se repete em diversas situações. Estradas sem manutenção se tornam armadilhas mortais. Hospitais sem recursos adequados não conseguem atender à demanda e comprometem o atendimento que poderia salvar vidas. Falhas em barragens, incêndios em favelas, deslizamentos de terra – tudo isso é previsível e, muitas vezes, evitável com planejamento e investimento adequados.

Quantas vidas perdidas ainda vamos justificar dizendo "a hora chegou" em vez de assumir nossa parte na negligência, no descaso? Até quando vamos permitir que tragédias anunciadas, que poderiam ser prevenidas, ocorram sem exigir medidas efetivas? A responsabilidade não pode ser diluída em frases fatalistas. Precisamos encarar a realidade: evitar novas tragédias exige ação, fiscalização e políticas públicas sérias. O destino de tantas vidas não pode continuar nas mãos da omissão, da indiferença.

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Publicado como coluna no jornal "O Alto Paraopeba":
https://jornaloaltoparaopeba.com.br/index.php/2025/03/30/sua-hora-chegou-quando-o-destino-e-fruto-da-negligencia/