domingo, 30 de agosto de 2020

AS TRÊS FACES DA MOEDA

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Antiga moeda romana com a bifronte de Jano.


Ele era um menino franzino de nove anos, mais preto do que branco, que pela manhã brincava na rua, à tarde frequentava a escolhinha da comunidade e à noite, quando a mãe, depois de chegar de uma faxina feita no outro lado da cidade, ia cuidar de uma velha senhora no luxuoso bairro vizinho, era molestado pelo padrasto.

Chamava-se Henrique. "Nome de rei", dissera-lhe a mãe, com um sorriso no rosto ainda jovem, mas marcado por um cansaço profundo, enquanto contemplavam o pôr do sol sentados nos degraus que davam para a rua. "Da minha barriga saiu um rei."

Henrique tinha muitos amigos, mas o melhor deles era Jorge - o Joca. Numa pelada, não havia uma em que não jogassem no mesmo time. Na escola, não havia trabalhos em grupo que fizessem separados. Não havia apuros que não superassem juntos. Eram amigos inseparáveis e incontestáveis.

Como verdadeiros amigos, sonhavam com um grandioso futuro, um futuro em que ambos, juntos, seriam os protagonistas, fossem eles pedreiros, motoristas de caminhão ou, melhor ainda, jogadores de futebol. E, como verdadeiros amigos, um sabia quase tudo sobre o outro.

Certa tarde, depois de um violenta briga com o padrasto, a mãe pegou Henrique pelo braço e ambos, com apenas a roupa do corpo, partiram sem destino. Depois de voltas pela cidade dentro de um ônibus, pararam em outra comunidade, a qual possuía o que pareciam ser as mesmas casas, as mesmas vielas, a mesma gente, a mesma escolinha que possuía aquela que haviam deixado para trás.

Mas nela não existia o Joca.

Henrique chegou a reclamar com a mãe, chorando ajoelhado a seus pés. Mas a resposta era sempre a mesma: "Aqui tem muitos meninos também. Você vai fazer novos amigos. Não podemos voltar para lá, Henrique. Não podemos. Precisamos esquecer aquele lugar."

Henrique realmente fez novos amigos, mas nenhum deles substituiu o Joca. Nenhum deles enxergava um grandioso futuro. Nenhum deles tinha grandes sonhos.

Em pouco tempo, para ajudar a pagar o aluguel do cômodo que a mãe alugara, Henrique passou a acompanhar alguns meninos que iam todas as manhãs para as movimentadas avenidas em frente à comunidade, onde revezava com eles, sobre as faixas de pedestre, o malabarismo com limões ou pedras, que aprendera na marra, em troca de algumas moedas ou mesmo notas altas dadas pelos motoristas parados no sinal vermelho do semáforo. Sempre voltava a tempo de ir para a escola, onde aguardava ansiosamente pela merenda, que lhe servia de almoço. Jantava com a mãe, que agora trabalhava somente durante a manhã e a tarde.

O tempo passou. Henrique cursou o ensino médio numa escola pública distante da comunidade, pagando a condução de ônibus com o dinheiro que agora ganhava numa lojinha numa daquelas avenidas. Para orgulho dele próprio e da mãe, passou no vestibular de uma universidade pública. Em quatro anos, seria um professor.

- Meu rei será um professor! Um mestre! - gritara a mãe, com imensa alegria, enquanto lágrimas lhe escorriam pelas bochechas.

Indicado por um motorista de ônibus que se tornara seu amigo nas idas e vindas para a universidade, Henrique passou a trabalhar como trocador. A garagem de onde partia o ônibus era próxima à comunidade e o ponto final ficava próximo à universidade. Assim, resolveu unir o útil ao necessário.

Foi então que, certa tarde na garagem, enquanto aguardava a chegada do motorista, sentado em seu posto no ônibus e mexendo no telefone celular que ganhara da mãe pela entrada na universidade, um rapaz entrou pela porta do meio e parou em frente a ele, apontando-lhe agitadamente um revólver e gritando:

- Passa a grana, otário! Perdeu!

Henrique o reconheceu.

- Joca? É você?!

- Cala a boca, maluco! Passa logo o dinheiro! Rápido, senão te meto um tiro na cara!

Os olhos do rapaz, exageramente arregalados sobre olheiras profundas, estavam pulsantes de fúria. Sua boca de lábios escuros com estranhas queimaduras possuía poucos dentes, todos enegrecidos e quebrados em vários pontos. Saía dela um cheiro forte e nauseante. Agitado, virava incessamente a cabeça em direção à secretaria e à entrada da garagem, mas não tirava a mira do revólver de Henrique.

- Joca! Sou eu, Henrique! Não se lembra de mim?

- Já mandei calar a boca! E passa logo esse dinheiro pra cá! Rápido!

- Joca! Mas sou eu, seu amigo! Não está me reconhecendo?

- Você pediu!

O revólver disparou.

A bala atingiu Henrique no coração.

Enquanto tombava debilmente para as poltronas à sua esquerda, o celular caiu de sua mão frouxa. Escutou o baque do revólver ao ser pousado sobre o caixa e o farfalhar violento de notas e moedas.

Antes de fechar os olhos, viu Joca pegar o telefone celular do chão e pisar na poça de sangue enquanto corria para a porta. As moedas tilintavam em seus bolsos.

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